Sem empatia na educação, não há revoluçãoLeitura de 15 minutos
Guilherme Cintra
CoCEO do Patio, unidade de negócios da Eleva Educação
Neste artigo, confira reflexões sobre como a empatia na educação é um dos fatores essenciais para qualquer gestor escolar
Estamos em 1820. Um homem é congelado. Acorda 200 anos depois. Fica desesperado. Tudo mudou. Até que chega a uma escola. Alívio. É o único lugar onde se sente em casa.
Já ouvi tantas vezes essa história que se me dessem um real por cada vez que as escutei, Jeff Bezos, Elon Musk e Bill Gates juntos não chegariam perto do meu patrimônio. Ao trabalhar com inovação e tecnologia em educação, somos bombardeados por essa mensagem.
“Escolas são conservadoras, educadores não querem mudar. Os alunos querem inovação, o mundo mudou, mas ninguém está disposto a mudar… blábláblá.”
O problema é: nunca explica-se o porquê. Assume-se que essa é a realidade. E que essa realidade é um problema. Mas, existe um problema básico: falta empatia a muitos dos empreendedores do setor educacional. Precisamos, portanto, mergulhar no real problema.
Empatia na gestão para empreendedores
Empreendedores em geral partem de um desconforto. É isso que mobiliza a tomada de riscos, as noites mal dormidas, o desconforto de criar algo novo. Isso significa que é provável que duas premissas básicas possam ser assumidas:
- O empreendedor médio em educação não gosta da forma como as instituições de ensino funcionam atualmente
- Empreendedores têm uma propensão maior a risco do que a maior parte das demais pessoas
Ora, se esses dois elementos são reais, é necessário que o empreendedor, portanto, olhe com carinho para o sistema que está prestes a entrar para que busque transformações concretas.
Entenda que, apontar o dedo e falar “o que você está fazendo não faz sentido” não é, provavelmente, a melhor forma de iniciar um diálogo (acreditem em mim, já vi empreendedor fazendo isso, literalmente). E que o sistema educacional tende a ser particularmente avesso ao risco sim. Mas existem motivos concretos para isso.
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Bem, para criar essa empatia é necessário escutar o usuário. Óbvio. Porém, o que não é tão óbvio é: quem é seu usuário? Quanto mais novo for o aluno, mais complexo é o ecossistema. De modo geral, principalmente em educação básica, minha área de atuação, não existe um único usuário. Existem pelo menos quatro:
- O aluno
- O educador
- O(s) responsável(is)
- O gestor
Não adianta: o empreendedor pode entender que seu usuário é apenas um. Decidir focar nele. Foco é importante, então faz sentido essa visão. Mas entenda: em algum momento os demais agentes estarão envolvidos no processo decisório de usar sua ferramenta. E de como usá-la.
Então vamos olhar para as perspectivas de cada um desses agentes sobre as mudanças que queremos trazer para os sistemas educacionais. E vamos analisar da perspectiva de risco x retorno. Qualquer decisão que tomamos passa por esse tipo de análise mesmo de forma inconsciente. Então vamos olhar ainda um pouco mais a fundo.
Roda de conversa: como manter a equipe aberta para inovação?
1. O aluno
Vamos começar logo pelo agente sobre o qual temos, talvez, as premissas mais fortes e, potencialmente, mais erradas. Nossos alunos.
É óbvio que eles querem mudanças, certo? Afinal, estão insatisfeitos com a escola. Querem tecnologia, esse é o mundo deles. Certo? Bem, não necessariamente…
Vamos aos fatos: estudo da companhia americana BrightBytes mostra que nos EUA, uma média de apenas 30% das licenças de aplicativos compradas é usada pelos alunos. Ainda mais impressionante é o fato de que 98% das licenças nunca foram usadas intensivamente (utilizadas por pelo menos 10 horas entre duas avaliações). Desperdício. O que estaria acontecendo?
Para começar, não é o simples fato de introduzir tecnologia no cotidiano do aluno que trará satisfação. O fato de os alunos viverem imersos em um mundo de apps e celulares é uma faca de dois gumes: enquanto isso faz com que não ter tecnologia nenhuma na escola a torne simplesmente alienígena a sua realidade cotidiana, também faz com que, quando introduzida seja naturalmente comparada a todos os demais softwares que usam em seu cotidiano. O “como” importa. E muito.
Jogos na sala de aula
Vamos olhar para o exemplo de jogos. Jogos educacionais, trazem uma boa promessa. O fato de, em geral, terem níveis, faz com que sejam ferramentas incríveis para trazer um elemento Vygotskyano à educação. Vygotsky, o famoso teórico da educação nos traz o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Ou seja, ao educar, precisamos entender aonde o aluno está, até onde consegue ir sozinho e onde entra o papel de um educador para fazê-lo evoluir.
Ora, jogos bem desenhados são exatamente assim! Afinal, se começam muito difíceis nas primeiras fases, frustram. Se são muito fáceis, também. Jogadores com níveis diferentes podem avançar mais rápido ou devagar. E afinal, alunos gostam de jogar. Em pesquisa no Reino Unido, concluiu-se que jovens passam 9 horas por semana jogando. Aos 45 anos, um jogador médio, portanto, terá passado quase 2 anos de suas vidas jogando!
Aí os jogos entram na escola. Brenda Laurel, uma pesquisadora de jogos, têm uma analogia genial para traduzir o que ocorre muitas vezes na prática. Brócolis coberto por chocolate. Por fora parecem deliciosos, mas no fim, o jogo é só uma múltipla escolha com uma leve camada doce de gamificação. Cansam rápido. E frustram.
Gamificação
Outro extremo está em jogos que trazem a gamificação para um nível tão complexo e fora do contexto da escola que o aluno simplesmente não consegue linkar a qualquer aprendizado aplicado em sua realidade escolar.
Daniel Wilingham, autor do livro Why Don’t Students Like School (Por que alunos não gostam da escola, em tradução livre) tem uma frase fundamental: “a memória é resíduo do raciocínio”. Se o aluno gastar mais tempo aprendendo as regras do jogo, montando seu avatar ou qualquer coisa do gênero, aprenderá muito sobre jogos e muito pouco sobre qualquer conteúdo que queiramos fazer.
Gamificação na educação: como usar e quais são os benefícios
Dito isso, um equilíbrio é possível. Pesquisas mostram que alguns jogos conseguem efetivamente trazer aprendizado para os alunos. Os ganhos são modestos, mas existem. Ou seja: não desistamos dos jogos, só sejamos realistas sobre seus efeitos.
Como criar experiências que engajam?
Outro elemento fundamental está nos incentivos que damos aos alunos. Em experiências práticas que vivenciei, pude ver que nossa descrença na capacidade de desenvolvermos experiências que efetivamente engajam os alunos e na possibilidade de gerar gosto intrínseco pela aprendizagem nos faz recorrer a uma ferramenta bem conhecida de qualquer educador: pontos extras. É o exemplo clássico de como distorcemos os objetivos efetivos da escola.
Somos obcecados por notas. E aí criamos alunos igualmente obcecados. Ao analisar a forma como várias escolas lidavam com a introdução de uma plataforma adaptativa nas escolas, fui conversar com os alunos que a estavam utilizando. Entrevistei “bons” e “maus” alunos de acordo com parâmetros de notas e comportamento. Olhei para a quantidade de uso da ferramenta. E entrevistei os alunos.
Primeiro entrevistei alguns que usavam pouco a ferramenta. Com notas baixas, comportamentos não-exemplares para não dizer o mínimo, não eram motivados pela escola. Quando perguntei sobre as poucas vezes que utilizavam as ferramentas, a resposta clássica: uso próximo ao fim do período que nos permite receber pontos extras. Ok, resposta esperada. Fui entrevistar portanto os “bons alunos” que usavam muito a plataforma.
Minha surpresa: a resposta foi exatamente a mesma. Mesmo os bons alunos entendiam aquela ferramenta como uma forma de ganhar pontos extras e não como algo que os ajudaria a aprender.
Quando essa situação mudava? Quando a escola envolvia os professores no processo com orientações de uso aos alunos e acompanhamento do processo.
2. Professor
Você preparou uma bela aula. Está animado com a perspectiva de testar uma nova ferramenta que, sem dúvida, ajudará a engajar seus alunos e ensiná-los. Tudo certo!
Começa a aula. O projetor demora a chegar. Passaram-se 3 minutos. Tudo bem, você se preparou pra isso, ainda sobra tempo.
‘- “Vamos turma, abram seus aplicativos no tablet que receberam! A senha para entrar na sala virtual está no quadro”.
‘- “Professora, o meu tablet não está ligando!”
‘- “Tia, não estou conseguindo ver o quadro”
‘- “Fessora, minha internet está ruim!”
“Mais 7 minutos… está ficando apertado… Ok, tudo resolvido, vamos em frente! Putz, a internet caiu…”
Pois é, qualquer um que já deu aula usando a tecnologia em uma escola que não está absolutamente preparada para utilizar ferramentas tecnológicas já passou por isso. E olha que no exemplo existe internet na sala, tablets individuais, projetor…completamente fora da realidade média de uma escola.
Usar ou não tecnologia?
Além da infraestrutura que pode acabar com qualquer planejamento, temos elementos culturais. Para início de conversa, projetos de lei recorrentemente proíbem o uso de celulares e equipamentos eletrônicos em escolas. Ok, explicitam que existem exceções no caso de atividades educacionais. Mas isso já denota nossa aversão ao uso de equipamentos eletrônicos.
Há um bom motivo para isso. Estudos da OCDE mostram que não há uma correlação entre fortes investimentos em tecnologia e aprendizado. Outros mostram que escrever em computadores prejudica mais que ajuda a retenção de conhecimento. Um bom e velho papel tem efeitos importantes.
Só que, de novo, o “como” não é discutido. Leis que proíbem o uso de equipamentos reforçam o fato de que, simplesmente, não acreditamos que é possível ensinar os alunos a usar tecnologia com responsabilidade. E aí, jogamos o bebê com a água do banho.
Uma escola que queira efetivamente aproveitar o melhor que é possível extrair de ferramentas tecnológicas precisa de um ambiente que permita que a comunidade aprenda junto como inserir essas ferramentas nas escolas.
Na Escola Eleva, os alunos passam desde cedo por um processo de formação para aprender a utilizar tecnologia de forma responsável. Existem aulas, existe rotina, períodos com e sem uso de tecnologia de acordo com a idade dos alunos. E existe formação também para os professores sobre como conduzir aulas utilizando os equipamentos.
Da próxima vez que questionar o comprometimento dos professores com inovação, pense se o ambiente para tal é propício.
3. Os responsáveis
Tomar uma decisão sobre a pessoa que você mais ama é uma responsabilidade enorme. Acrescente a isso o fato de que decisões que envolvem educação tendem a ser difíceis de compreender ainda mais quando não se é especialista.
Os resultados só são enxergados, em geral, em longo prazo. E, muitas vezes, entendemos que apesar dos pesares, nossa educação funcionou minimamente pra gente. Por que arriscar mudar?
Educação é, de modo geral, um sistema intergeracional. A realidade da vida dos responsáveis quando estavam na escola (dos professores e gestores também) é absolutamente diferente daquela dos alunos. E a dos alunos que estão na escola são diferentes da realidade que enfrentarão adiante.
Sabemos que bons resultados acadêmicos são sinalizadores importantes para o futuro e que, em geral, são mensurados por notas. E essas notas associadas tendem a ser associadas à realidade atual, dificilmente buscando prever e se adaptar para o que será necessário quando os alunos forem, eles mesmos, responsáveis por seus filhos. Esse peso todo faz com que seja mais fácil manter-se no jogo como ele é hoje. Em termos de risco x retorno, é difícil alegar que seja trivial uma revolução completa na forma de educação de meus filhos.
Em uma experiência própria, ao iniciar o projeto de uma escola inovadora, vivemos na pele essa realidade. Pensamos em não ter dever de casa, preparar de forma diferente os alunos, dando menos peso ao ENEM e mais para que os alunos fossem para fora ou tivessem experiências diversas.
Só que, quanto mais próximo à hora da verdade do vestibular, menor a propensão a tomarmos risco. Na hora do aperto, o foco em avaliações tradicionais pesa e inibe mudanças. Vamos culpar as famílias por quererem garantir que os alunos sejam bem sucedidos no sistema como ele é?
4. Os gestores
Bem, imagine que se alunos, professores e responsáveis têm tantos motivos para terem dificuldades em buscar transformações no setor, esse peso cai enfim sobre os gestores. Sejam eles secretários de educação, diretores, coordenadores, de escolas públicas ou privadas espera-se que se alcance resultados.
Uma piada comum no mundo corporativo é: “Ninguém nunca foi demitido por contratar a Microsoft”. Ou seja, apostar em uma companhia nova para um trabalho a ser realizado pode gerar problemas que te levam a ser cobrado. Mas ao contratarmos um gigante, bem, fizemos o esperado, a culpa não é minha. “Ninguém nunca foi demitido por se preparar para o ENEM/Prova Brasil” é um bom equivalente no mundo educacional.
Fazer o básico bem feito é uma forma de, dentro de um sistema complexo, garantir o mínimo que se espera. E o mínimo que se espera é mensurado por avaliações que, se não forem adaptadas para uma nova realidade, cobrarão algo que o sistema educacional atual já entrega se o feijão com arroz é feito.
As decisões racionais muitas vezes vão então reforçar os elementos básicos. É por isso que temos tanto “treinar para a avaliação” no setor público ou privado. No setor privado, se desejar escalar, dificilmente fazer uma escola quase irreconhecível será o melhor caminho para conquistar muitos clientes.
No setor público, arrisca-se soar insensível com a realidade. E, é provável que seja mesmo. Para ser sensível com a realidade, as mudanças precisam acontecer com tempo e planejamento. Não é o que nosso sistema eleitoral tende a incentivar.
Ok, então agora podemos chegar a uma conclusão lógica. Deixa tudo como está. É difícil. Muita gente envolvida, muita coisa para fazer… Não, meu objetivo com este texto não é demover ninguém a tentar impactar o setor por meio de novas tecnologias ou metodologias. Existem algumas características fundamentais para quem quer fazê-lo no entanto.
Confira as características em novo artigo